Santo Sousa

Falando do poeta
Quando um poeta completa 100 anos, louvores devem ser feitos cantado sua estética e força criativa, principalmente quando ele se chama: José Santo Sousa, o encantador da palavra
Nascido a 27 de janeiro de 1919 em Riachuelo, ele cresceu mais do que a cidade que o recebeu e abraçou sua infância. Sua trajetória o levou em diversos momentos a publicar uma obra do maior significado cultural, enchendo de orgulho os sergipanos pela simplicidade de sua existência e a extraordinária riqueza da sua criação.
No ritmo de suas palavras há uma melodia-tristeza, composta no sofrimento dos aflitos, no rompimento dos sonhos, com uma poética assustadoramente bela e forte, maior que o tempo que passando, se negou a morrer, pois se fez eterna.
Louvamos o poeta!
E no louvar, fica o lirismo das palavras

Edição de 1964 Capa de: Lev Smarcevski

Desenho: Jenner Augusto
PÁSSARO DE PEDRA E SONO
Antes, mal reuníamos o susto
com que o desviver nos amealha.
Ponte armada entre o agora e o amanhã,
o sono transportava o nosso esforço
ao esquecimento, nos repartia
o sonho e a calma, em paz e liberdade.
E tecíamos as nossas esperanças
no linho branco da aurora, enquanto
a chuva matinal nos diluía, um após
outro, os amargos cristais de sal
e de amarguras, com que o existir
ungia a nossa boca. E trabalhávamos.
Crentes e vorazes, na urdidura
de um mundo mais humano, onde
o coração pudesse florescer,
produzir riso e rosa, construir
asas, dar de beber aos párias,
amansar a dor, o sofrimento
E amávamos. E o irmão reconhecia
o nosso amor que era puro, amor
de fontes, de pássaros, de chuva
acalentando a terra e os homens.
Tirávamos a camisa, o peito claro,
sem sombra de punhais no coração
E levantávamos andaimes para
o céu, mergulhávamos o mar,
ninguém nos afrontava. Todos
lúcidos. Iguais em sonho e morte.
Carregando as mesmas pedras, os mesmos
túmulos, as mesmas alvoradas.
Um dia, entanto, despertamos
petrificados e aturdidos, mãos
vermelhas de ocaso, olhos ferozes,
cinza e sangue nas têmporas. Íamos
fugindo para o inferno, e o céu
cobria o rumor de nossa marcha.
E então plantamos nossa espada,
nossos rios, a música das ruas
perseguidas. Erguemos torres de aço
contra a vida. Urdimos traição
guerra, assassínio e mudamos
o destino dos homens e dos pássaros.

Desenho: Leonardo Alencar
PAUS-DE-ARARA
Dos galhos magros das árvores,
dos braços murchos das cruzes,
como anúncio calcinado
pelo fogo dos caminhos,
um grito pula no céu:
SÊDE! SÊDE!
E fugimos. – Vamos todos,
retirantes nordestinos,
tristeza e fome da raça
gravada no corpo morto
da paisagem violenta
no cerco de angústia e lágrimas
violentando o coração.
Fugimos em debandada
como aves de arribação:
firmamento no olhar triste,
gado e roça devorados
na fogueira da aflição
a morte medindo o tempo
com as rodas do caminhão.
Restos vivos de sertão
- sertão de sede e abandono:
os rios transfigurados
em caminhos infinitos
no mapa de espinho e pedra
que o incêndio do céu desenha
na geografia da seca.
Paus-de-arara pastoreando
os quatro ventos do mundo,
poeira que o sol comanda
na vertigem das estradas
livro enorme nunca lido
nem ao menos manuseado
pelos donos da nação.
Vamos todos acossados
por mil demônios furiosos:
egressos exasperados
das garras da exploração
olhos órfãos de esperança,
pernas bambas da miséria
deste Brasil grandalhão.
E apesar de convertidos
em tema de sensação
para arte e literatura
vamos pelo mundo e a noite,
andrajosos, pés descalços
manchando o chão do hemisfério
com a nossa negra amargura.
Nossos filhos inocentes
viraram chôro e poeira,
sepultados nos caminhos.
Mas suas alminhas brancas
tão brancas que fazem dó!
vão levando aos céus vasios
nossos ais e desalentos,
enquanto aqui represamos
a chuva de suas lágrimas,
na certeza e com elas
um dia reger o chão
êste chão de muitas mortes,
de onde havemos de colher
os frutos da redenção.

Desenho: Lênio Braga
NOITE DE NATAL
QUERO ser uma estrela
infinitamente grande,
para brilhar nas mãos
das criancinhas famintas
que vão pisando
as trevas dos caminhos
nesta melancólica Noite de Natal.
Quero ser os sinhozinhos
de prata e as luzes
multicores da árvore
tantas vezes sonhada
pelo que esperam,
indefinidamente,
a chegada de Papai Noel
nesta melancólica Noite de Natal.
Quero ser o carrossel
para os que não têm dinheiro;
a camisinha nova
para os que vivem nus;
o sorriso alegre
para os que estão chorando
à sombra dos casebres
nesta melancólica Noite de Natal.
Quero ser o Rei Mago
nas longas estradas poeirentas,
para levar presentes
de pães e cobertores
aos que estão tiritando
de frio e fome nas calçadas
nesta melancólica Noite de Natal.
Quero ser o burrinho
do Belém, pastando
nos livres caminhos do mundo,
para carregar no lombo
a tristeza de tantas
crianças maltrapilhas
nesta melancólica Noite de Natal.
Quero ser a prece,
o pedido feito no silêncio,
a frase espontânea
na boca do menino
que a casinha do morro esconde
sob o teto de zinco
nesta melancólica Noite de Natal.
Quero ser o sapatinho,
a bonequinha de louça,
o vestidinho de chita,
o aviãozinho de matéria
plástica, o velocípede,
o trenzinho elétrico
fazendo viagens infinitas
- tudo isso que Papai Noel
promete aos infelizes,
mas nunca,
nunca se lembra de trazer
nesta melancólica Noite de Natal.